segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

"Sofri muito de racismo nos anos 90, mesmo assim evito falar disso"

Plutonio esteve à conversa com o Notícias ao Minuto sobre o seu terceiro álbum: 'Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor'.

"Sofri muito de racismo nos anos 90, mesmo assim evito falar disso"
Notícias ao Minuto
03/01/20 por Sara Gouveia
Cultura Plutonio
Nascido e criado no Bairro da Cruz Vermelha e após o lançamento de dois discos - 'Histórias da Minha Life' (2013) e 'Preto & Vermelho' (2016) -, cujos singles chegaram a platina, Plutonio apresenta-se como um rapper mais maduro e pronto a contar a sua história na primeira pessoa neste 'Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor'.
O disco, que saiu no dia 22 de novembro, vai ser apresentado ao vivo pela primeira vez a 14 de fevereiro, no Coliseu de Lisboa e a 21 de fevereiro, no Hard Club, no Porto.
Este terceiro álbum é composto por 18 temas entre eles os dupla platinados 'Meu Deus' e '1 de abril'. O MC e produtor que decidiu misturar vários estilos no seu último trabalho esteve à conversa com o Notícias ao Minuto sobre o processo de produção do álbum, a relação com a religião e o caminho interligado entre a sua vida e carreira que percorreu até aqui.
“'Tou muito à frente desses niggas/Me'mo se eu fosse nascer/Daqui a um ano/Eu 'tava a frente desses niggas/Se o gato é preto, eu sou pantera nigga/Vais pensar que eu tenho sete vidas” - Começas assim o tema ‘Mesmo Sítio’. O que é que pretendes dizer com estas frases?
Durante muito tempo estive a tentar afirmar-me, não só no movimento hip-hop mas na música em geral em Portugal e neste momento sinto que estou numa posição em que as pessoas estão realmente a ouvir a minha música, da forma que eu sempre quis. Ainda assim o que está a sair neste momento são coisas que já tinha feito há um ano, algumas há dois, ou seja, de certa forma estou à frente do tempo. Quando falo comparativamente com os outros rappers é por achar que no geral, não todos, há alguns nomes que já têm muito sucesso, mas não têm assim tanto talento quanto sucesso.
Fala-nos um pouco do teu percurso até aqui.
Foi complicado, foi muito difícil. A maioria das pessoas que eu conheço que passaram pelo mesmo tipo de dificuldades que eu, nesta ou noutras áreas, à partida desistiram. Ultrapassar essa fase foi mesmo muito difícil, até perceber que as pessoas começavam a ouvir Plutonio de uma forma mais séria em que poderia haver um espaço para mim na música e para poder viver da música. Mas depois de ultrapassar foi como combustível para agora estar aqui a trabalhar e a querer atingir mais objetivos, tanto a nível de números de Spotify, de singles, de galardões. Tem sido muito gratificante e prova de que se quisermos e lutarmos por aquilo que queremos conseguimos.
Passaram três anos desde o lançamento do teu último disco. Quando é que começaste a pensar no ‘Sacrifício’?
Comecei a pensar neste álbum antes de lançar o anterior. Lancei ‘Histórias da Minha Life’ em 2013, três anos depois lancei o ‘Preto e Vermelho’ e agora passados outros três anos lanço o 'Sacrifício', que termina esta triologia. Já imaginava o nome e o caminho, claro que depois vai alterando ao longo do tempo mas já era uma coisa que eu tinha em mente, já tinha isso tudo pensado.
Com os outros álbuns aprendi algumas coisas, nomeadamente que muitas das vezes há músicas que por estarem entre muitas não têm o espaço que deviam ou o mesmo que têm os singles. Lançar 18 músicas ao mesmo tempo por vezes é demasiada informação para as pessoas, por isso desta vez fui tentando fazer vídeos para todas essas músicas para conseguir que tivessem todas a mesma atenção de forma independente.
Queria contar a minha história e que não dissessem que a música tinha tido sucesso por alguém ter feito o refrão ou um verso, então achei que tinha capacidade e as condições para fazer este álbum sozinhoO subtítulo do álbum é uma referência a um álbum do Chullage 'Rapresálias… Sangue, Lágrimas, Suor'. Porque é que sentiste necessidade de lhe fazer esta homenagem?
Porque acho que todas as pessoas que têm o direito de aprender - que acho que somos todos - também tem o dever de ensinar. O que é que quero dizer com isto? Hoje em dia estar nesta posição foi por ter ouvido alguém que de certa forma me influenciou, mesmo que a pessoa não o saiba.
Acho que é uma boa forma de dar continuidade ao trabalho que ele fez no passado e a que ele, se calhar, também está a dar continuidade a alguém que ouviu antes dele. É uma forma de mostrar respeito, independentemente de géneros, a verdade é que a influência que o Chullage teve em mim fez-me o músico que sou hoje.
Sabes se já ouviu o disco e o que é que achou?
Ainda não. Sei que ouviu algumas músicas. Estive com ele pessoalmente antes de lançar o álbum e disse-lhe que tinha esta ideia -  já o conhecia de outros tempos, já tinha aberto um concerto dele e o DJ que participa no meu álbum.
A minha maturidade foi evoluindo, hoje em dia sinto que me consigo explicar melhor e dizer o que quero dizer sem atacar ou culpar outras pessoasPorque é que escolheste não ter participações?
Por achar que muitas das vezes por termos participações se as pessoas gostarem ou tiverem mais familiarizados com o artista da participação acabam por lhe dar mais protagonismo e tirar o mérito ao outro artista. Queria contar a minha história e que não dissessem que a música tinha tido sucesso por alguém ter feito o refrão ou um verso, então achei que tinha capacidade e as condições para fazer este álbum sozinho.
Quais é que consideras serem as principais diferenças entre este álbum e os anteriores?
Sem dúvida a forma como eu me explico. Nos outros álbuns sempre falei mais ou menos das mesmas coisas, a minha maturidade é que foi evoluindo, mas hoje em dia sinto que me consigo explicar melhor e dizer o que quero dizer sem atacar ou culpar outras pessoas. Consigo passar um texto para alguém que não venha da mesma realidade ou que tenha a mesma idade que eu conseguir entender. Foi nisso que trabalhei mais.
Crescer num bairro foi muito difícil, mas também foi muito bom noutros aspetos. Já passei por muita coisa e ainda estou vivoSentes que o teu público tem vindo a alterar ao longo dos anos? Ou que tem crescido contigo?
Creio que tem crescido comigo. Alterou o facto de antigamente ser um nicho e hoje em dia chegar às massas, mas acho que não perdi a base do público. Acho que o mesmo público que ouvia Plutonio há dois álbuns continua a ouvir, mas havia quem não ouvisse nos outros álbuns que agora já começa a conhecer e a querer estar nos concertos.
Logo no primeiro tema do álbum ‘Meu Deus’, dizes: “Aprendi a não guardar ódio e rancor/Aprendi a nunca questionar o meu senhor/Mas se tu tas do meu lado/Responde a minha pergunta/Meu Deus por favor” - Qual é a tua relação com a religião e com Deus?
É uma relação muito íntima. Já fui mais religioso por influência da minha mãe e da minha avó, todos os meus familiares mais velhos eram religiosos. Cresci num meio de respeito a Deus, de muita fé e de certa forma na minha vida houve uma altura em que era assim. Depois segui o meu caminho, deixei, mas mais tarde sozinho comecei a ir à procura da minha fé interna através das minhas próprias perguntas. De certa forma como nessa música. Mas entre muitas dúvidas que tive também senti o efeito positivo de Deus na minha vida, daí ser uma pessoa que acredita tanto.
Já passei por muita coisa e ainda estou vivo. É mesmo uma bênção para mim, mas não sou uma pessoa que prega ou que tente obrigar as outras pessoas a acreditar, cada pessoa tem o direito de acreditar ou não.
Já sofri de violência policial várias vezes e não foi só uma chapada, um pontapé, ou com um cacetete, não. Foi ao ponto desmaiar e precisar de ajuda para ser reanimado…Viveste no Bairro da Cruz Vermelha, sentes que a realidade mais pesada do bairro, da criminalidade, de que forma é que isso teve impacto na tua vida? 
O facto de ter crescido num bairro alertou-me para certas coisas de que outras pessoas que cresceram noutras condições, com educações mais nobres, não têm a mesma noção. Desde miúdo que tenho amigos que se meteram em drogas pesadas - que não são do bairro - que tiveram todas as condições para não se meterem nisso. Já eu sou do bairro e talvez por ter visto à minha volta o que é que aquilo fazia, nunca foi uma coisa que me atraísse, nunca tive essa curiosidade. Não foi uma coisa que precisaram esconder-me, até porque era impossível, mas também não precisei de saber o que fazia, sabia que não queria ser assim, não queria mais tarde ficar como aquelas pessoas. Isso e outras coisa fizeram-me estar mais alerta.
Crescer num bairro foi muito difícil, mas também foi muito bom noutros aspetos.
É um sítio onde ainda voltas muito. Como foi crescer ali?
Eu vivo no bairro. Viajo muito por causa da música, mas os meus amigos estão lá e sempre que posso estou ali. O bairro também tem o lado do convívio, da reunião. Antes do álbum ter saído para as massas os meus amigos já sabiam todos as músicas, ajudaram-me a escolher a ordem das músicas no disco, quando estou a fazer um videoclipe, por exemplo, se precisar de alguma ajuda, de um gerador, de um carro, o que seja, já sei que há sempre alguém dali que me vai ajudar. Há sempre alguém que de repente é eletricista, canalizador, mecânico, arranja-se muita coisa.
Quando vou para a estrada, quando há concertos ou outra coisa qualquer se houver algum lugar tento ajudar alguém do meu bairro que considere que possa ter jeito para aquela função. É uma questão de entreajuda.
Sofri muito de racismo nos anos 90, vi amigos meus, vi a minha mãe a sofrer, os meus irmãos e mesmo assim evito falar disso publicamente Tendo em conta mediáticos casos de violência entre habitantes de bairros e membros das autoridades que têm sido tornados públicos, como foi o caso do Bairro da Jamaica ou da esquadra de Alfragide, como é que alguém que cresceu com essa realidade olha para estas situações?
Na altura muita gente falou sobre esse assunto, principalmente o do Bairro da Jamaica, eu a única coisa que disse foi no Twitter que “há anos que venho a falar de brutalidade policial nas minhas músicas, mas nada como ver para crer”. Isto para dizer que tanto no Bairro da Jamaica como na Cova da Moura, e noutros bairros, esses casos não se tornam mediáticos ou porque ninguém conseguiu filmar ou porque a filmagem foi enviada para algum meio de comunicação, mas seja lá porque motivo for, não foi divulgada. Para nós isso já é normal.
Já sofri de violência policial várias vezes e não foi só uma chapada, um pontapé, ou com um cacetete, não. Foi ao ponto desmaiar e precisar de ajuda para ser reanimado… e isso não deu em nada, a polícia não teve problema nenhum. Por isso decidi usar a minha música para combater isso, para expor isso, usar a minha liberdade de expressão, sem estar a cometer crimes ou resolver com a mesma moeda que me poderia dar uma condenação pior. Mesmo no caso da Cova da Moura em que os agentes foram condenados, isso é um caso em mil.
Sentes que os relatos de racismo estiveram adormecidos e que de repente - sobretudo nas redes sociais - parecem ter vindo a aumentar?
Acho que as redes sociais dão e tiram. Para já, acho que o racismo deve ser combatido na vida real, é uma coisa muito maior do que a Internet, do que um clique ou até do que uma música. Eu evito falar de racismo na Internet porque depois as pessoas pegam numa só parte do que se diz e manipulam a coisa da forma como querem.
As redes sociais são quase como ver a lua ao telescópio, qualquer pessoa com uma coisa mínima consegue transformar aquilo numa coisa gigantesca. O racismo é um tema muito delicado. Sofri muito de racismo nos anos 90, vi amigos meus, vi a minha mãe a sofrer, os meus irmãos e mesmo assim evito falar disso publicamente porque sei que há pessoas que não são racistas e se falar dos racistas de uma forma geral acabo por tocar em pontos que vão ser familiares a pessoas que na verdade não o são. Por isso evito falar disso em público e combato todos os dias para um melhor entendimento dos outros. O racismo só se combate com convivência direta.
Tento passar uma mensagem de luta, de sofrimento também, mas de superação. O ‘sangue’ é luta, as ‘lágrimas’ são o sofrimento e o ‘suor’ é o dar a volta por cima e o lutar com garra para atingirmos o que queremosA música 'Francisca' é uma carta de amor para a tua filha? E a batida de bossa-nova serve para lhe dar um ar de música de embalar?
Sem dúvida. Mas muito sinceramente não pensei sobre o instrumental. Ouvi-o, senti-me inspirado e fiz aquela letra. Era um tema em que eu já queria tocar há muito tempo. A minha filha já tem quatro anos, mas só queria fazer a música quando sentisse que fosse genuína e acho que quando aquele instrumental tocou de repente veio-me aquele refrão e fiz a música toda. Senti que era uma música com que estava confortável, não para por na rádio ou para ser single de platina, foi completamente genuína e que que quero que daqui a 20, 30, 40 anos tenha capacidade de compreender.
O Sam the Kid trabalhou contigo para encontrar o beat certo para o tema ‘Sacrifício’. Porque é que sentiste que era a pessoa certa?
O meu primeiro género musical foi mesmo o rap old school dos anos 90, foi aí que comecei a fazer música, depois fui descobrindo que gostava de mais coisas e fui fazendo. Mas sei que naquele género específico e independentemente de onde quer que eu vá tenho de me lembrar sempre de onde venho e acho que este tema é um resumo do álbum todo e teria de ser feito assim. Então achei que em Portugal não havia melhor do que o Sam the Kid para produzir isso, que fazia sentido. Já sabia quando fui trabalhar com o Sam the Kid tinha o tema, mas não tinha mais do que isso, sabia como queria que fosse. Então andámos para trás e para a frente, em dez instrumentais que ele me mostrou gostei muito de umas três ou quatro e quase no fim ele mostrou-me um rascunho e eu pedi que passasse novamente e ficou aquele e pronto, passado dois dias tinha a música gravada, ele mexeu mais umas vezes e ficou feito. Foi um casamento perfeito, sem dúvida.
Se conseguir ter impacto na vida de uma pessoa, já valeu a penaEste ‘Sacrifício’ é a história de alguém que viveu e cresceu com dificuldades num meio desfavorecido, mas que conseguiu vingar na vida. É uma chamada de atenção e um exemplo para quem ainda está a lutar?
Sem dúvida. Tento passar uma mensagem de luta, de sofrimento também, mas de superação. O ‘sangue’ é luta, as ‘lágrimas’ são o sofrimento e o ‘suor’ é o dar a volta por cima e o lutar com garra para atingirmos o que queremos.
Eu vim das piores condições daquilo que é viver na periferia de Lisboa, ou que era nos anos 90, e consegui ultrapassar isso e pôr-me numa posição de conforto por ter batalhado tanto naquilo que eu mais gosto de fazer. Mas foram precisas muitas noites em branco, foi preciso bater com a cabeça muitas vezes, foi preciso as pessoas à minha volta não perceberem a grandiosidade do que eu achava que aquilo tinha, muito sacrifício mesmo. Daí querer passar essas mensagens na minha música. Se conseguir ter impacto na vida de uma pessoa, já valeu a pena.
Para o ano vais estrear-te no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a solo. Era um sonho?
Era um sonho tão grande que eu não achava que era possível. Era daquelas coisas como um dia querer ir à lua. Há umas quantas coisas que eu não achava que eram possíveis mas que, graças a Deus, o tempo tem vindo a mostrar poderem ser possíveis. O Coliseu era uma delas, até porque dentro do meu género não havia exemplos de rappers que tinham atuado lá. Não achava que era possível, hoje em dia tendo em conta os resultados que as músicas têm tido faz todo o sentido.
O que é que podemos esperar mais do Plutonio em 2020?
Espero lançar mais músicas, não vou dar muito espaço entre o álbum e as outras coisas que quero fazer, até porque já tenho estado em estúdio, vou fazer muitos shows e espero sempre dar o meu melhor.

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